Maconha, a grande vencedora das eleições americanas

Na mesma eleição que deu a vitória a Donald Trump e mergulhou os Estados Unidos no desconhecido, norte-americanos de oito Estados deram sinal verde para a legalização da maconha. Califórnia, Massachusetts, Nevada e Maine autorizaram o uso recreativo da erva, algo que já era realidade na capital e nos Estados do Colorado, Oregon, Washington e Alasca

Com isso, mais de 63 milhões de norte-americanos (20% da população) vivem agora em Estados onde o uso recreativo de cannabisé legal para maiores de 21 anos. Dos que levaram o tema a referendo, apenas o Arizona rejeitou a proposta. Quanto ao uso medicinal, eleitores de Flórida, Arkansas, Montana e Dakota do Norte disseram “sim” à legalização, que hoje alcança 29 dos 50 Estados do país.

“Isso representa uma vitória monumental para o movimento da reforma da maconha. Com a liderança da Califórnia, o fim da proibição se aproxima rapidamente no país e até mesmo no mundo”, disse em um comunicado Ethan Nadelmann, diretor-executivo da Drug Policy Alliance, organização sem fins lucrativos que defende o fim da guerra às drogas.

A Califórnia foi pioneira em legalizar o uso medicinal da maconha nos EUA, em 1996. O Estado, o mais populoso e mais rico do país, faz fronteira com o México e tem potencial para impactar o debate sobre drogas em toda a América Latina.

De acordo com projeções do Arcview Group, companhia que faz a ponte entre investidores e empresas de cannabis, o mercado regulado de maconha movimenta 6,8 bilhões de dólares por ano nos EUA e, com a adesão da Califórnia no segmento recreativo, em quatro anos esse valor deverá saltar para 22 bilhões.

A proposta aprovada por 56% dos californianos permite que cidadãos com mais de 21 anos portem até uma onça (equivalente a 28 gramas) de maconha para uso pessoal, mas o consumo em locais públicos não será permitido. Também foi autorizado o cultivo de até seis plantas por residência.

As licenças para lojas, os chamados dispensários, deverão ser emitidas a partir de janeiro de 2017, e a previsão é que as vendas para uso recreativo sejam liberadas no segundo semestre ou apenas em 2018.

Os recursos obtidos com o comércio regular de cannabis na Califórnia serão destinados a estudos sobre maconha medicinal, pesquisas sobre as consequências de dirigir sob efeito da substância, campanhas de educação preventiva e estudos contra danos ambientais provocados pela produção em larga escala.

O avanço da onda verde na nação que é a maior patrocinadora da guerra às drogas foi detectado em pesquisa realizada em outubro pelo Instituto Gallup, segundo a qual 60% dos americanos defendiam a legalização do consumo de maconha, maior índice registrado em 47 anos. Em 1969, quando essa pergunta foi feita pela primeira vez, apenas 12% apoiavam a medida.

O contato com as experiências inovadoras do Colorado e de Washington a partir de 2012 pode ter contribuído com essa maior aceitação da cannabis pela população. Na Califórnia, por exemplo, a legalização do uso recreativo havia sido rejeitada duas vezes, em 1972 e em 2010.

“Essa é a primeira votação que se faz já conhecendo experiências de legalização. Os americanos sabem como foi no Colorado, então não é mais um tiro no escuro”, afirma Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundations, organização que financia pesquisas em diversos países e foi fundada pelo megainvestidor George Soros. “E lá funcionou. O Estado arrecadou centenas de milhares de dólares em impostos e o consumo de maconha não aumentou. O grande mito da discussão da regulação é o aumento do consumo”, continua.

Para Abramovay, é essencial deixar claro que não se trata de liberação, mas de regulação. “As drogas são liberadas hoje, quem quer tem acesso livre às drogas. Não importa se é menor de idade, não importa se é rico ou se é pobre, é sempre muito fácil conseguir drogas. Mas as drogas não devem ser algo fácil de conseguir, não devem ter propaganda na televisão. É preciso ter um controle bastante rígido.”

Relatório publicado em outubro pela Drug Policy Alliance aponta que o consumo de maconha entre adolescentes não aumentou nos Estados que autorizaram o uso recreativo. O estudo cita, por exemplo, pesquisa realizada pelo Departamento de Saúde Pública do Colorado com 17 mil estudantes que indica ligeira queda no consumo em 2015.

Questionados sobre o uso de maconha nos 30 dias anteriores à pesquisa, 21,2% dos adolescentes afirmaram ter consumido a erva. Em 2009, três anos antes da legalização no Colorado, esse índice era de 25%. O mesmo levantamento apontou, ainda, que 43% dos estudantes admitiram ter usado cannabis pelo menos uma vez na vida em 2009, índice que baixou para 38% em 2015.

O relatório aponta, ainda, que o mercado formal de cannabis rendeu ao Colorado 129 milhões de dólares em impostos no último ano fiscal e que as prisões por posse, cultivo e distribuição irregular de maconha foram reduzidas pela metade. A legalização é frequentemente apontada por seus defensores como um instrumento capaz de corrigir injustiças contra as minorias, hoje muito mais suscetíveis a prisões e condenações por crimes de drogas.

Independentemente do que acontece em nível estadual, a cannabis continua ilegal no âmbito federal e está enquadrada na categoria reservada às drogas mais perigosas, conforme classificação do DEA (Drug Enforcement Administration), órgão responsável pela repressão e controle de narcóticos nos Estados Unidos.

Se em 2013 o governo Barack Obama anunciou que respeitava a decisão dos Estados sobre a legalização da maconha, os norte-americanos não sabem o que esperar de Donald Trump, que não se posicionou claramente sobre o tema durante a campanha eleitoral.

Embora tenha defendido a autonomia dos Estados e dado declarações favoráveis ao uso medicinal da erva, o republicano fez críticas à legalização do uso recreativo. À imprensa norte-americana, o diretor-executivo da Drug Policy Alliance resumiu o sentimento: “Ter Donald Trump como presidente me preocupa profundamente”, disse Nadelmann.

Brasil

O avanço da legalização da maconha nos EUA pode impulsionar o debate sobre a descriminalização do porte e consumo de drogas no Brasil. O julgamento do tema está parado desde setembro de 2015 no Supremo Tribunal Federal, quando o ministro Teori Zavascki pediu vista do processo (RE 635659). O placar, por enquanto, está 3 a 0 a favor descriminalização, com votos de Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin.

Para Abramovay, os ministros devem levar em conta as experiências bem sucedidas de outros países. “Acho que tudo isso influencia o debate. A ideia de que a criminalização é algo absolutamente ineficiente e que existem outros modelos permite uma discussão mais qualificada”, afirma.

No que diz respeito à classe política, porém, Abramovay não enxerga mudanças no curto prazo. “Ainda temos muita gente que ganha votos com a ideia de guerra às drogas, de semear o medo para colher repressão.”

*Reportagem publicada originalmente na edição 927 de CartaCapital, com o título “O alento da erva”

Imagem destacada: Jonathan Alcorn/Reuters/Latinstoc

Fonte: Carta Capital

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